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Vícios Atrás Da Porta

Um cara qualquer perguntou para mim e o meu atual boy se tínhamos balinha numa balada. A gente disse que não usava. Ainda assim ele continuou lá falando que era viciado nisso, contando problemas e depois foi embora. Curtimos nossa noite, sem julgar o assunto ou ficar impressionados. Fiquei pensando por que falar sobre vícios deixa as pessoas tão apreensivas? 




Se a gente for reparar de verdade, estamos diante de vícios o tempo todo, sem entender muito bem o que isso significa...Maconha, Prozac, Gardenal, Eparema,  Rivotril, Anador, Lactopurga, Coca-cola, redes sociais,  emprego, casamento, Carnaval, futebol, alguma paixão, entre outras milhões de coisas. Cada qual com seu vício, com sua ilusão.

Decerto alguns vícios são piores que outros. Já vi pessoas ficarem viciadas em costumes religiosos. Também já tive amigos com problemas bem graves usando drogas ilícitas e não tive a curiosidade de experimentar, vendo tantas experiências ruins na minha frente. Outro dia, encontrei um deles no elevador da Revista em que eu trabalhava – que por sinal era um pé-no-sa-co. Era uma amiga distante. Coincidências? Sim.  Vou continuar acreditando que elas existem, que podem ser escritas, até que algum pomposo do misticismo me prove o contrário.


Disse que estava tentando parar de usar alucinógenos, decidiu se tratar. Desejei sinceras sortes e que ela não tivesse recaídas na sua decisão, porque esta é sempre difícil. Tomar decisão é  diferente de tomar qualquer coisa. Decisão é uma droga perigosa, quando o efeito bate nunca tem volta. É  assim, colada com as nossas escolhas.

Não sei o que é usar drogas pesadas, não saberia afirmar algo sobre elas.  Já sai de bares bem pra lá de louca, já tomei remédio pra ansiedade, pra dormir, enfim um horror. Foi fase. Troquei remédio por terapia, deixei alguns vícios internos para trás, conservei a cerveja e afins, os livros, e as paixões por coisas que são muitas...

Saio no fim de tarde a encontro do love. Reparo nos muitos cigarros e nos tiques dos outros, nas filas dos comércios, nas mãos digitando os Iphones, e fico com a impressão de que todo mundo tem um vício atrás da sua porta, bem escondido. 

“ Não conheço seus vícios ainda...” – ele disse.  “Quem sabe um dia você decida descobrir...”-  respondi encostada na parede. Me deu um beijo, daqueles de se afogar na água salgada e  fizemos sexo ao som do blues vindo da janela.





Acho que viciei em blues. Um dia enjoo, ok. Sei lá, talvez sentimento faça a gente descobrir as coisas juntos, até mesmo os vícios. 



K.C

Papo de Loki

Gosto de festas, mas tem muita gente que pira nelas, inclusive nas de final de ano. E não estou falando do fato de se comprar muitas coisas, do consumismo e outros clicheirismos que falam sobre as mesmas festas, afinal consumista todos são um pouco, não há como escapar disso socialmente. Também não incluo a piração em relação às festas com parentes, porque  sobre isso, bem...  comentários são dispensáveis, mas...



Há pessoas que piram, acham que precisam se esturricar de comer e ficar com uma barriga horrorosa do tamanho de um óvni, porque parece que o mundo vai acabar se elas não comerem tudo em um dia. Criticam que o outro às vezes não tem um prato de comida, enquanto elas comem um peru inteiro - sei lá em quantas posições.

Alguns acreditam demais em crendices interioranas, de deixar água, farofa embaixo da porta para atrair sorte, alguns procuram uma cartomante, na ilusão de ouvirem que a vida vai ser mais original no ano seguinte, “talvez você fique rico, talvez você encontre uma paixão e sua saúde fique boa e talvez tenha inveja e encostos no seu caminho, mas você terá coragem pra enfrentar tudo isso...”. 

O que mais tentam...Mudar a cor da calcinha e da cueca no final do ano? Como acabei de escutar no local em que estou? O que mais falta inventar, oferenda para Michael Jackson? Eu hein, sei lá...


- Só a lingerie? Não vai levar nenhuma calcinha pra virada do ano? 


- Não, obrigada.

- Olha,cuidado hein? Você está levando um conjunto que por mais que seja bonito é preto, vai que seu ano dá zebra...

-Bom, se isso fosse verdade, pra dar zebra eu deveria levar aquele ali, listradinho, não acha?

- Sim, mas você poderia levar outro mais claro.

- Moça, se isso é pra vender mais coisas não pretendo realmente comprar  outras, mas se isso é uma preocupação fica tranquila: eu não vou passar a virada do ano de calcinha preta, porque nem de forró eu gosto...

- Troca por uma cor mais clarinha, pelo menos.

- Mas não tem fundamento e não quero.

- Mas... tanta gente acredita!

- Não necessariamente... Eu não acredito muito nessas crendices, folclóricas demais pro meu gosto...


- Hum... Mas ah sei lá, é uma questão cultural...


-Cultural?  Eu posso te fazer uma pergunta já que insiste tanto no assunto?

- Claro, pode sim.

- O mundo tem em torno de seis bilhões de pessoas, acho que até já ultrapassou, não é?

- Sim.

- Por conta disso, ele não gira em torno de nós mesmos, certo?

- É, pensando bem...

- E você acha mesmo que a sorte, caso ela exista, está mesmo impactada na cor do que você usa ou deixa de usar na sua britney na virada do ano?

- Não, mas não é bem assim também... Ta, não tem tanto fundamento mesmo.

- Pois então... se isso fosse realmente verdade, seria muito mais prático todas as pessoas do mundo ficarem sem cueca e calcinha do que ter essa crise toda. Muito mais Woodstock, “sustentável”, isso anda tão na moda...


-...,...,..., é débito?

- Sim.

-Digite a senha.

- Pronto.

- Quer sua via?

- Não. Feliz ano novo.

- Pra você também.


Acho mesmo que tudo isso de espalhar o discurso da cor da roupa íntima  no ano novo não passa de cafonice. 

De nada adianta se colorir com roupas, se as atitudes e desejos sempre tiverem  as mesmas cores.

Talvez as melhores delas estejam nas nossas mudanças. O resto é papo de loki.



K.C

Chá de Sumiço





Aeroporto. 10:15 da manhã. Sei lá por qual motivo, voos sempre atrasam, não é um problema único do sistema aéreo, não pode ser só isso, acho que atraso é gosto cultural, noiva, salário, esses tipos de coisa, sugerem ter o que reclamar depois.


Queria fugir de aeroporto. A gente passa horas lá, esperando o Godot ...volta, senta nos bancos de espera, repara em um monte de gente,  lê coisas, vê souvenires e o tempo insiste em não passar. 

E banheiros de aeroportos? Aparentam ser cleans, com um leve cheiro de limpeza, mas não são. Eles são como aqueles segredinhos sujos que as pessoas escondem: olhando para elas, parece que está tudo limpo, mas sempre há algum germe. E lá fui eu para mais uma ginástica feminina em banheiros públicos...


Lavei as mãos, comprei um chá , sentei, vi as horas e nada de ela passar. Fiquei ali  eu e o meu chá. Meu chá e eu... até que vi de relance uma criatura mais que indesejável. 






 A primeira coisa que deu vontade de fazer foi evaporar, dar um chá de sumiço total. Chato esse tipo de coisa, de encontrar gente babaca, indiferente. Eles até cumprimentam, querem conversar, esse tipo de gente mala adora perguntar agradavelmente "e ai e a vida?”, como se nada tivesse acontecido, e eu nada falo. Por sorte a pessoa mala não me viu, e continuei ali. Eu e meu chá. Meu chá e eu.

Deveria ter um jeito de tomar chá de sumiço pra um monte de coisas, pra fugir de situações, de pessoas, de embaraços – os de amizade e de amores, inclusive, porque são sempre os piores, de discursos que tentam vender como interessantes, e inclusive de aeroportos... algo que realmente  funcionasse com um pouco de água, um sachê mágico na xícara e blim: não estou lá. Pá -pum:  você nunca me viu. Foda-se.


...Mas se chá de sumiço existisse, quantas vezes não teria que se tomar na vida? Não daria certo usar alguma substância pra viver fugindo, embora um monte de gente faça isso... – divaguei ...


- Oi!


- Ai, que susto!


- Nossa, parece que viu uma baleia fazendo top less, o capeta,  coisa parecida...


-  Você e suas expressões... Não, eu vi alguém de relance bem chato e do mesmo nível dos seus maravilhosos exemplos,  mas passou. Ainda bem que é você. Estou com medo disso aqui hoje: duas pessoas, num dia só...


- Saudade do seu sarcasmo.  Você  ta bem? 


- Sim  e você, o que conta?

- Não conto nada demais. Esperando algum voo demorado como eu?


-  To... 





-  Poxa, você deu um chazinho de sumiço, né?


- De onde?


-  De Sampa, dos lugares, do blog... chá de sumiço, total!


-  Não dei chá de sumiço, apenas sumi, mas andei fazendo outras coisas...

 - Sei... "coisinhas" é? - risadas.


- Coisinhas também, né... - risadas. E trabalho, e faculdade e  tudo o resto... 


- É agenda lotada, moça... Sei como é.


 - Existe a grande diferença de dar chá de sumiço e sumir, sabe ... 


- Andei pensando em sumir um tempo, mas... ué, pra mim chá de sumiço e sumir é a mesma coisa...


- Não é não. Chá de sumiço sugere fuga, evaporar de algo, viver fugindo, sei lá... agora sumir sugere algum afastamento, ficar no seu canto por um momento, mas às vezes é preciso. 


-  Sumir?


- Sim.  Às vezes, é preciso sumir pra poder se encontrar ou então perder-se de vez.






K.C

Bem Mais Que 0,20

Outro dia eu estava voltando para casa. Estava no trem, e percebi o quanto a gente vive ensimesmado consigo mesmo, não deve ser bom, nem ruim, é um costume. Amanhecia. Momento pós-balada. Não havia muita gente no vagão, pelo horário...



....Um estudante cheio de livros, tinha cara de ser um daqueles novos socialistas de faculdade, meio piradinhos por Marx, uma senhorinha até que bem vestida e a-pa-ren-te-men-te comportada, uma moça com o uniforme de um hospital importante, com pinta de secretária, daquelas estilo “patrão vem que eu to facinho”, uma criança barulhenta com uma mãe com jeito de acreditar ser eficaz dar broncas no menino, um cara dormindo de ressaca, e que parecia estar três vezes bem pior que o Mussum...

“ Me desculpe atrapalhar a viagem de vocês...” – xi, já conhecia esse discurso, ele é comum entre pedintes nos transportes públicos, mas era um senhorzinho que desde minha época de cursinho pedia dinheiro para se tratar do HIV... às vezes me dava uma loucura na ideia e eu dava dinheiro pra ele:

- Você sumiu... – o senhorzinho disse.

- Pois é, ando por ai, em outros lugares também...

- Longe?

- Não muito, a gente se acostuma a viajar pra lá e pra cá- e no fim percebo que tudo é estreito-. E o seu tratamento?

- Indo...

- Toma- peguei meu troco do metrô e dei a ele.

- Não, não,  obrigada, mas hoje são só vinte centavos. – disse ele me devolvendo o resto das moedas.

- Ta...



Aquele senhorzinho deve ganhar mais grana que todo mundo pedindo dinheiro, às vezes, acho que ele não sofre de doença nenhuma,  mas não sou alguém para julgá-lo. O fato é que o tipo dele disfarça bem, alto, com olhos caídos, cara acabada, magro, quase esquelético, com todo respeito, mas ele parece uma pessoa realmente doente, terminal...

Se ele é um ator, atua bem. Se ele realmente é doente não está fazendo algo criminoso ao pedir dinheiro pra se tratar, já que a doença que ele diz ter tem remédios caros, enfim não sei até hoje por que o ajudava, nunca achei que minha esmola o ajudasse em alguma coisa... mas a minha, mais a de alguns, em conjunto, já era uma boa grana...

Desci na Estação  com destino à home sweet home. Ele também desceu no mesmo local, e seguiu outra direção. Reparei uma coisa escrita em suas costas “20 centavos não farão falta”. Essa onda vinte centavos repercutiu, e nós sabemos o porquê. Dei uma leve risada e pensei  “... que tática de marketing...”. E muito boa, por sinal. O modismo causa percepções diversas nas pessoas, leva-as da alienação à comoção, e ao mesmo tempo faz com que os vinte centavos não fiquem pra’s empresas de transporte.


Se eu sou a favor da esmola? Não tenho uma opinião precisa sobre isso. Esmola pode ir muito além do dinheiro.




Só sei que no fundo, nada e tudo , nunca são vinte centavos. Por trás de vinte centavos não existe só política, existe consequências, existe pessoas,  ou até mesmo uma história, coisas que a gente nem percebe quando se chega no destino da Estação e a viagem termina.  


K.C

A Volta Da Piriguete Pródiga





Maria Gostosa  era puta e morava num puteiro perto do Parque da Luz sem número
Uma noite ela entrou na Igreja “Só O Senhor Salva”
Piscou
Flertou  
Cantou
Depois se casou com o pastor e virou evangélica.


Ao poeta Manuel Bandeira que se hoje vivesse se isolaria de vez em Pasárgada.


K.C

Maldita-Bendita





Saudade é um negócio maldito. Eu vivo dizendo pra Kelly que não gosto de sentir saudades. E ela entende. Porque fico desesperada, eu não sei como lidar com a saudade. Sou fraca pra ela. Não gosto de sentir saudades de ninguém, de mãe, de amigo, de avó,  de amor, de passado, de um outro alguém... saudade ... não sei como Fernando Pessoa fazia poesias pra um sentimento que parece ser maior que o amor, raiva, ou qualquer coisa, e você não pode controlar, ao mesmo tempo  não quer sentir, mas sente. 

Sinto tipos de saudades, entendo-as, ai elas passam, eu crio outras,  suporto-as e uma hora, elas passam ou pioram, às vezes se tornam até belas. Mas não deixam de ser malditas. Parece um recado inacabado de alguém na caixa postal e você fica com aquela fissura de ouvir o resto. Um email de alguém que você adora, mas sabe que nunca vai receber.  E se receber , é melhor guardar, porque de repente você não terá nada do tipo na sua caixa de entrada novamente.

Saudade parece como correr no meio de uma estrada onde não passa ninguém que se gosta pra poder acalmar  o corpo num abraço e se for saudades de alguém que já se foi, então? Pior ainda, nem alma penada aparece na estrada. Mas quando se está vivo... É sempre um jogo. Ou você reage, ou ela acaba com você...



- Alô?

- Oi... Teca?

- Sim.

- Tá tudo bem?

- Tá... tava dormindo?

- Não. Sério mesmo, você tá bem? Parece toda... estranha...

- Tá. Eu só tava com saudade.

- Menos mal. Também to com saudade de você, até comprei um negócio.

- O que? Uma cueca comestível?

- Não , engraçadinha. Surpresa. Mas pelo seu teor de voz achava que tinha acontecido alguma coisa mais grave...

- Mas saudade pra mim é uma coisa grave...

- Eu sei, já conversamos sobre isso, mas e agora?

-Ah agora, eu melhorei. Esquece, eu não sou uma  pessoa muito normal... que espécie de pessoa gasta os míseros créditos do celular, liga pra alguém  no meio da madrugada, meio ansiosa, vê o email umas cinco vezes só pra saber se tem uma mensagem sua porque sentiu saudade...  e precisa muito falar com a pessoa... porque saudade pra ela é um negócio meio estranho, angustiante...

- Alguém realmente não muito normal...

- Hum.

- ...por isso que eu gosto de você.


A conversa continuou, mas naquele momento...  Não é que a maldita me rendeu sorrisos? Ganhou de mim,  no jogo. Mas não mudei minha opinião sobre ela, é mais ou menos como uma coisa adversária, sabe, incomoda, mas uma hora a gente é obrigado a suportar.

Quer saber? Saudade é uma bênção maldita.




K.C

Noite Travestida

Noite Fria. Garoa forte. Relâmpagos no céu que preparavam a vinda do temporal. Mas  eu preciso de um cappuccino – pensava.



A essa hora?  Tudo bem que a loja de conveniência é logo ali, mas está tarde. Eu vou.  Não, não vou, compro amanhã, deixa de ser gulosa. Sua viciada em cafeína. Vai se tratar. Mas já coloquei as botas, ta eu vou. Não vou. Não , não vou nessa garoa... Ta, eu vou.

Na loja, nada mais que uma típica loja de conveniência poderia oferecer. Congelados, petiscos, as famosas besteiras e a máquina de fazer café que eu tanto procurava... Um casal de meia idade, com pinta de que haviam acabado de sair do teatro ou coisa parecida. Um cara que não chegava a ter semblante de loki, mas parecia ser misterioso, lendo um livro....

Uma atendente de cabeça baixa, semblante blasé, com cara de quem não transava há meses. Seus olhos diziam que ela estava odiando trabalhar ali, numa noite fria. Era uma mulher que parecia estar somente travestida em um uniforme, no fundo, ela estava gritando...

Parei de divagar. Queria meu cappuccino e ir pra casa.  O dia tinha sido agitado, difícil,  reflexivo. Trabalho, faculdade,  roupas velhas doadas a um brechó, conversas sobre relações de amizade e amores que simplesmente tiveram o seu fim...

Por que que a vida passa tão rápido, a gente muda  as relações,  os conceitos, as ideologias, e nem se dá conta disso? Tão óbvio pensar isso. A gente muda porque a vida está em movimento, mas por que caminhos tão tortos e rápidos? Como tanta gente passa pela vida, assim, num clique? Não conseguia tirar isso da cabeça.



Segui a avenida que era caminho do prédio. O cara misterioso me seguiu. Fo-de-u. Ative o 190. Corra. Grite "Socorro!". Consegui chegar até a porta do prédio, e senti uma mão pesada no meu ombro, virei assustada, olhando pra cara do maluco. Ele olhou nos meus olhos e disse:

- A vida tem muitos caminhos. Ela sabe de  todas as coisas, o que poderá  ser e o que não poderá ser um dia.

- Quem é você? Qual seu nome? De onde você veio?

- Só vim dizer isso. Boa sorte, moça.

Eu hein, cara esquisito, nem me conhece... Subi as escadas do prédio pensando. Não sou religiosa. Não gosto da palavra religião. Ela afasta as pessoas,oprime, cega, pode até chegar a matar em alguns continentes e as pessoas dizem que é em nome do seu Deus,  quando na verdade são os seus egos violentos.  




Religião é um mal estar na civilização. Mas por incrível que pareça, tenho crença em um Deus. Há algo invisível que transcende o mundo. Uma espécie de força superior. Quem tem algum tipo de fé, mas não gosta de religião, nunca sabe explicar essas coisas direito. Só sente que existe.

Quem era aquele cara?  Pode ter sido Deus. Deus? Sim, Deus. Às vezes, acho que Ele gosta de ser sacana, assim. 

Deus deve se travestir de pessoas, só pra dizer uma frase travestida de coisas que nem sempre é o que se procura, mas  é preciso escutar.





E  ainda há religiosos por ai que dizem que Ele não gosta de quem se traveste... Será? 



K.C

Filosofando O Palavrão



- Vai tomar no seu cu!

- Ah, não. Sinto muito, mas não vou, não.

-Por quê?

-Por que deve dar trabalho, ser ruim. Já pensou como a pessoa que toma no seu próprio cu se sente?

- Não...

- Tirando que não deve ser uma prática fácil...a pessoa tem que ter muita resistência física pra tomar em si mesma.  Em vista do imaginário social da prática ser dolorosa, isso pode gerar desconfortos físicos, gerar algum tipo de inflamação...

- Fora a vergonha de ir pro hospital por ter tomado lá...

 - Exato! Pode gerar uma operação cara, também dolorosa e de risco. Como o SUS dispensa comentários de atendimento e um convênio não está algo muito barato, eu não sei se tomar no próprio cu é uma boa ideia.

- Por que é que as pessoas nunca pensaram nisso...



- Deve ser pelo fato de elas só falarem. Podem ter tomado de alguém, mas não de si mesmas...Você não consegue tomar  a sua mente, e vai conseguir  tomar no seu cu? Não faz sentido!

- É por isso que o foda-se pode simplificar muita coisa, mas...

- Eu acho que não é bem assim. Foda-se? Simples? Desde quando?

- Não, pensando bem , é solitário isso...

- E ao mesmo tempo  conjuntural. O que chega a ser um paradoxo.

- E o filho da puta?

-Bom, ser filho da puta, já não é mais palavrão faz tempo. As putas estão em alta. Elas lançam livros, elas vão a programas de TV, elas aumentam o cachê,  ficam  ricas, viram filme, ganham colunas ,  posam pra várias revistas, se convertem, lançam igrejas,  tem status ... não deve ser ruim assim , na atualidade, ser filho de uma puta...

- Então, só nos restará, mandar a pessoa ir pro inferno?

- Calma lá. Calma lá que mandar uma pessoa ir pro inferno  anda cafona demais. A onda agora é macedônica  A moda é o céu.

- Vai  pro céu é o novo inferno?

- É uma questão a se pensar, mas vai  pro céu ou tomar no céu como expressão é mais cafona ainda... porque os palavrões tem a ver com o proibido e a rebeldia... 


- Se a gente for tomar no céu, acabou a graça e a raiva juntas...

- Eu chego a ter dó do inferno com tanta espiritualidade, e pastores , e bispos, e padres, em voga.  Chego até a pensar se ir pro inferno é bom... o que deve ter lá?

-  Será que é tudo separado? Deve ter uma ala só de caveiras...  E fogo, muito fogo...

- E não tem chope pra suportar  aquele calor?

- Acho que não... que caótico...

-Ah, o Brasil  também é caótico , mas tem chope gelado pra suportar, então entre ir se foder e ir pro inferno, prefira sempre  ir pro Brasil.

- Eu to triste agora, com esse papo. Como xingar as pessoas quando a gente estiver com raiva?

-  Eu também estou ficando meio tristinha com isso... Diga as expressões que achar necessárias.

-  Mesmo que nenhum palavrão não faça mais tanto sentido?

- O sentido, como toda época se constrói,  ele próprio nunca se faz sozinho.

-  Então, quer dizer que nem palavrão a gente tem mais direito?

- No fundo, não temos mais nada direito.



K.C

Fim De Tarde





17:18 pm. Lago. Pôr do sol. Fim de tarde. Eu estou tão bem, mas de repente senti um vazio  e não é por causa de alguém. Foi um estopim. Um aconteceu. Um agora.

O ser humano é um animal vazio e atormentado por excelência, beiramos ao desprezível. Tentamos preencher nossos vazios, com sexo, amigos, conhaque, cheques pré-datados em lojas de shopping, uma viagem, algum livro, um trabalho, uma faculdade, uma conversa qualquer, um momento com a família, entre outros costumes.


Não, não era um vazio assim, imediato, que você preenche com coisas. Isso eu sentia, disso eu sabia. Sabia porque sinto muitas coisas durante um dia, alegria, raiva, tristeza, deboche, tédio dependendo da situação, mal humor só de olhar pra cara de alguém que não gostaria, tesão dependendo com quem estou ou do que estou fazendo, e não era igual.

Quem não se permite sentir não se perde, tampouco se encontra no caminho.  É um negócio parado, feito este lago borocochó e bonito que agora vejo. A única vez que  esse sentimento aconteceu foi quando minha avó materna faleceu. Por isso achei estranho...




Eu era criança, tinha uns cinco aninhos. Foi no meio  de uma tarde, mas tive medo de escuro, forte, coisa de criança. Quando fecharam o caixão ... , ..., ... eu não consegui olhar as memórias de uma  breve infância indo pra baixo de uma cova. “Então é assim que acontece com todo mundo? Uma hora a gente fala muito e depois resolve ficar quieto numa caixa de madeira pra sempre? E as pessoas ficam olhando ... porquê?”. Eu em minha inocência, tentando entender o que era um velório, perguntei a um parente qualquer. 

Pode ser preconceito, mas boa parte dos parentes nunca tem uma resposta convincente para os assuntos que locomovem o cotidiano. E você faz aquele sorriso amarelo e social pra disfarçar as piores idiotices que eles dizem, tipo a última moda do cabelo espichado de um certo jogador, o que ele fez, o que deixou de fazer, o último jogo, o que ele disse, super incrível...





O certo parente olhou pra minha cara com dó e não sabia o que me dizer.  Sumi do lado de todos. Eu corri e corri muito dentro do cemitério, desesperada. Fiquei dando voltas, assustada, até encontrar o estacionamento. Achava que aquele escuro iria me pegar e ninguém ia me proteger ali, nem meus pais, nem irmãos, eu ia ter que me defender sozinha, quando este chegasse. Óbvio que depois minha família , já abalada, ficou louca comigo. 

Foi ali que descobri o que são verdadeiros medos humanos. Estranho sentir isso novamente após anos. Estranho lembrar daquele acontecimento. Algo dentro de mim morreu e eu não sei o que é...

Minha avó sempre dizia em palavras, em histórias, e no seu olhar  que a gente não pode fugir das escolhas e fatalidades que acontecem  na vida. Foi uma mulher incrível e ela não sabia disso. Fumava na década de 30, coisa que hoje é meio deselegante, ruim, mas pra uma mulher naquela época era um escândalo, uma rebeldia, depois de anos ela parou. Era vaidosa, adorava batom, assim como eu.


Se apaixonou por um negão, meu avô, e enfrentou a família pra casar com ele, num momento em que o preconceito era muito mais explicito.  Perdeu dois filhos que morreram jovens, meus únicos tios, só restou minha mãe. Ficou doente, perdeu uma perna com gangrena. É, ela enfrentava a barra, mesmo depois que ficou numa cadeira de rodas.


As pessoas que a conheceram dizem que minha personalidade meio forte veio dela. E realmente, confesso que tenho a personalidade meio avessa nos ambientes que transito. Percebi que com o tempo eu tenho tratado muitas coisas que simplesmente não me interessam com indiferença. Deixado todo aquele blá blá blá de hijos de puta que não serve pra nada, comentários e pessoas que não me servem para trás.

“Você deixou de ser uma jovem garota, e se tornou uma jovem mulher.” assim sussurrou a Nona no meu ouvido, no final da tarde. “Eu acho que você está certa...”, respondi a ela em pensamento, com uma leve saudade. 


E  naquele fim de tarde, já caindo a chuva, ela me mostrou que  esse vazio não é estranho. É temer o escuro quando ele vem, é pensar no que fazer com as sombras humanas que temos dentro de nós mesmos e não podemos escapar.




K.C