Noite Fria. Garoa forte. Relâmpagos
no céu que preparavam a vinda do temporal. Mas eu preciso de um cappuccino – pensava.
A essa hora? Tudo bem que a loja de conveniência é logo
ali, mas está tarde. Eu vou. Não, não
vou, compro amanhã, deixa de ser gulosa. Sua viciada em cafeína. Vai se tratar.
Mas já coloquei as botas, ta eu vou. Não vou. Não , não vou nessa garoa... Ta, eu
vou.
Na loja, nada mais que uma típica loja
de conveniência poderia oferecer. Congelados, petiscos, as famosas besteiras e a
máquina de fazer café que eu tanto procurava... Um casal de meia idade, com
pinta de que haviam acabado de sair do teatro ou coisa parecida. Um cara que
não chegava a ter semblante de loki, mas parecia ser misterioso, lendo um
livro....
Uma atendente de cabeça baixa, semblante blasé,
com cara de quem não transava há meses. Seus olhos diziam que ela estava
odiando trabalhar ali, numa noite fria. Era uma mulher que parecia estar somente
travestida em um uniforme, no fundo, ela estava gritando...
Parei de divagar. Queria meu cappuccino e ir
pra casa. O dia tinha sido agitado, difícil,
reflexivo. Trabalho, faculdade, roupas velhas doadas a um brechó, conversas
sobre relações de amizade e amores que simplesmente tiveram o seu fim...
Por que que a vida passa tão
rápido, a gente muda as relações, os conceitos, as ideologias, e nem se dá conta
disso? Tão óbvio pensar isso. A gente muda porque a vida está em movimento, mas
por que caminhos tão tortos e rápidos? Como tanta gente passa pela vida,
assim, num clique? Não conseguia tirar isso da cabeça.
Segui a avenida que era caminho do prédio. O cara misterioso me seguiu. Fo-de-u. Ative o 190. Corra. Grite "Socorro!". Consegui
chegar até a porta do prédio, e senti uma mão pesada no meu ombro, virei
assustada, olhando pra cara do maluco. Ele olhou nos meus olhos e disse:
- A vida tem muitos caminhos. Ela
sabe de todas as coisas, o que
poderá ser e o que não poderá ser um
dia.
- Quem é você? Qual seu nome? De
onde você veio?
- Só vim dizer isso. Boa sorte,
moça.
Eu hein, cara esquisito, nem me
conhece... Subi as escadas do prédio pensando. Não sou religiosa. Não gosto da palavra religião. Ela afasta
as pessoas,oprime, cega, pode até chegar a matar em alguns continentes e as pessoas dizem que é em nome do seu Deus, quando na verdade são os seus egos violentos.
Religião é um mal estar na civilização. Mas por incrível que pareça, tenho crença em um Deus. Há algo invisível que transcende o mundo. Uma espécie de força superior. Quem tem algum tipo de fé, mas não gosta de religião, nunca sabe explicar essas coisas direito. Só sente que existe.
Religião é um mal estar na civilização. Mas por incrível que pareça, tenho crença em um Deus. Há algo invisível que transcende o mundo. Uma espécie de força superior. Quem tem algum tipo de fé, mas não gosta de religião, nunca sabe explicar essas coisas direito. Só sente que existe.
Quem era aquele cara? Pode ter sido Deus. Deus? Sim, Deus. Às vezes,
acho que Ele gosta de ser sacana, assim.
Deus deve se travestir de pessoas, só pra dizer uma frase travestida de coisas que nem sempre é o que se procura, mas é preciso escutar.
Deus deve se travestir de pessoas, só pra dizer uma frase travestida de coisas que nem sempre é o que se procura, mas é preciso escutar.
K.C
Lembrou um texto da fernanda young que li em que ela fala porque que ela acredita em Deus mesmo não sendo normal, escrevendo comédia e tudo mais.
ResponderExcluirGosto do seu lirismo é interessante misturado com comédia, "fodeu, grite socorro" uhuahuahauaha, poucos conseguem misturar isso , Kelly. Isso é muito legal em você. Texto
bem escrito ,despojado e falando da vida, as mudanças, as religiões e o que pensamos sobre Deus. Parabéns.
A Young é ótima mesmo e eu a conheci por um blogueiro, adorei. Obrigada pela leitura viu? Att. Bj.
Excluirops conheci seus livros por um blogueiro.
ExcluirOi Kelly, minha amiga escritora!
ResponderExcluirMenina, mais um belo e inteligente texto. Vc usa palavras as vezes chulas, mas elas casam bem com seu texto e não o depreciam!
Parabens, vc é uma grande cronista!
Obrigada, André Mansim. Eu gosto muito das suas crônicas também.
Excluirna verdade, na verdade...
ResponderExcluiré conhecimento básico, mitologia tipicamente indo-européia.
deve-se sempre ser caridoso com mendigos e estranhos que batem à sua porta pedindo refúgio para a noite e alimento. pode ser um Odin disfarçado. Ou um anjo, dizia-se já na Europa Medieval. às vezes mesmo Jesus percorria o mundo travestido em maltrapilho para testar a bondade nos corações das pessoas.
entre os Nórdicos temos o Havamál (Palavras do Altíssimo), um dos principais livros sagrados que, diz a tradição, foram palavras e conselhos proferidos por Odin aos príncipes do mundo enquanto viajava pelos reinos disfarçado de mendigo e pedindo abrigo a eles.
um dos títulos de Odin é "Grimlord", o senhor das máscaras, ou dos disfarces.
e o próprio Jesus, um deus travestido de humano cujo grande ato é fakear uma morte.
sim, porque todo sacrifício é fake, nunca se sacrifica algo que será perdido, cuja falta será de fato sentida. mesmo quando requisitado a Abraão sacrificar algo de valor (seu filho), era trollagem de Deus.
há uma carta no Tarot que especifica isto, chamada O Enforcado, mas cujo nome original é Le Pendu, O Pendurado. cito aqui um texto de um amigão meu.
na verdade ia citar aqui, mas vai ter que ficar pro próximo comentário (grande demais).
ainda vou ter que dividir o texto
ResponderExcluir"Suspenso pelo pé. Suspeno na teia da vida, por um fio, por um fio. Não está lá nem cá; é uma transição, mas uma diferente da carta da morte, porque é engendrada. É uma carta falsa, intrinsicamente mentirosa. Não é a toa que as leituras "baixas" do tarot entendam o enforcado como um coitadinho aos olhos dos outros ou alguém que finge sofrimento. O enforcado se pendura para causar dor a si mesmo, ele erige um suplício; a dor é fictícia mas dói mesmo assim. Porque ele sabe, a todo momento, que pode sair dali. Que nem Jesus pendurado na cruz, que nem Odin pregado em Yggdrasil, não há algo realmente a ser perdido. Mas é preciso estar por um fio para atingir a iluminação; porque trata-se disso, um sacrifício pela iluminação. A teia da vida foi a vovó aranha quem teceu, e não é coincidência ser ela que na mitologia nativo-americana quem rouba dos povos do leste o segredo do fogo e dá aos humanos e animais. Ela porta a chama e ela entrega a chama, é pendurado em seus fios que se descobrem os segredos (run). O enforcado constrói um constrangimento proposital, ele se põe cativo e amarrado, para exercer a mais fina de todas as artes: a arte do escape.
Para os gnósticos era assim que funcionava: o deus falso criou a matéria, e consequentemente nós. Então o deus amoroso e verdadeiro mandou seu filho - puro espírito - para falar com os homens que mesmo na criação falsa do deus falso, havia a centelha de verdade. E Jesus nunca sofreu na cruz porque ele não era corpo, ele só pareceu sofrer, o verdadeiro cristo espiritual estava dando gargalhada algumas árvores de distância do calvário. Todo mundo tem um cristo interior, e como diz nos invisíveis, "and now it's a rescue operation": essa fagulha-crística tem de escapar das gaiolas do mundo falso da matéria, do poder falso dos reis do mundo, da justiça vazia dos senhores alados do céu. Eu to contando isso porque esse mito de alguma forma permeia nosso imaginário moderno, especialmente em Matrix. É uma idéia podre porque parte de uma negação primordial do SER, torna esse mundo e essa vida irreais perto de outro além (Invisíveis de novo: "the gnostic error is to hate matter. Matter is the part of the heaven we can touch"). Nietzsche deixa bem claro a grande bosta que isso é. Mas está aqui, em todo o pensamento moderno... Uma essência criativa que busca expandir (liberdade individual), uma força constritiva que busca reprimir (estado? escola? família? sociedade?), e é nessa dicotomia que a modernidade dança, balançando de um lado para o outro. São filhos da modernidade tanto o humanismo quanto o materialismo; o primeiro se esconde na obscuridade do espírito humano, e lá encontra a redenção; o segundo tritura todo o universo fazendo dele um relógio cego. O primeiro vem nos contar as novas - de que somos livres - enquanto o segundo vem nos contar que não existe livre-arbítrio, só causas e consequências determinísticas. E eles convivem, e coabitam, e estão lá, de braços dados na ciência.
eita
ExcluirO enforcado é sobre o potencial ganho de jogar esse jogo, de se pendurar de cabeça pra baixo no limite extremo do aprisionamento - mas não há riscos, você sabe desde o começo que não há sacrifício verdadeiro. Que não há caos contra ordem, essa é a ficção que a própria ordem construiu pra poder manter seu mundinho polar. Se amarrar na beira do penhasco do SER para poder escapar; escapar do jogo em si. Indo aos céus como cristo, descendo a terra como a prometéia vovó aranha, guardando consigo os segredos - runas - que são a própria magia. Porque é óbvio que se volta , sempre se volta - não é este o eterno retorno de Nietzsche? A dança do mundo é interminavel. Sempre criativa. Sempre repetitiva. Dá pra entrar no mundo onde ou é novo ou é repetido; ou é livre ou é preso; exatamente, e unicamente, para curto-circuitar todo esse pesadelo moderno. Que nem Willhelm Reich se perguntando - pode o desejo desejar a própria repressão? Libido contra libido; é claro que sim. Liberdade que produz prisão, prisão que é condição necessária e obrigatória da liberdade. O enforcado está preso para ser livre. É uma iniciação. Suspenso no Entre. Pregado na cruz, empalado na árvore sagrada, pego pelos pés na armadilha da vida."
ResponderExcluirmysterylane . blogger . com . br
Interessante, gostei das suas reflexões sobre a religião. Você entende hein? Att, obrigada.
Excluirsuas crônicas são muito boas! :)
ResponderExcluiras vezes fico na dúvida se são crônicas mesmo ou se são parte de que aconteceu no seu dia...
são reflexivas, vale a leitura!
Obrigada querida. Bj.
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