Uma dose de pílula digital

As chaves de casa, a maquiagem, a agenda, canetas, o livro da semana, algumas bagunças que só o meu mundo e minha bolsa entendiam. Assim sai de casa e começou  parte do meu dia, com a forte sensação de que tinha esquecido alguma coisa importante.

Olhei para o céu acinzentado, com a garoa caindo, na certeza que tomaria um belo toró por não ter levado guarda-chuva.






Até eu perceber que não tinha ouvido nenhum toque de ligação ou aviso de SMS dizendo “ já chegou o disco voador” – toque que utilizo para mensagens chatas e compromissos inadiáveis. Enfim, me dei conta de que havia esquecido o celular.

Não dava pra voltar naquele temporal e as beiradinhas das telhas me protegiam de um banho de chuva na metade do caminho. E agora? Como será o resto do meu dia sem o celular? – pensei, enquanto um relâmpago cortava o céu.

Alguém deve estar tentando falar comigo agora pois tenho pautas amanhã algum cliente também pode precisar e se acontecer alguma coisa urgente vou ficar sem música compro um aparelho extra mais simples mesmo? É bom ter um celu extra vai que dá alguma zica...ah tem o bofe também como ele vai falar comigo você não ia terminar o e-book que estava lendo hoje?...-  meu cérebro processava, sem vírgula alguma.




Voltei a calcular um retorno à minha casa e, em resposta, a chuva se enfureceu e eu fui obrigada a parar embaixo de um toldo qualquer. Só me restava esperar. Verbo tão estranho nos nossos dias, tão líquidos e instáveis como a chuva...

Comecei a reparar nas pessoas com seus celulares que estavam na mesma situação que eu embaixo do toldo, e nas outras que passavam por ali, mais atenciosas com os celulares do que com seus guarda-chuvas.

O celular já não é apenas uma necessidade, porque há acima disso a vontade de boa parte das pessoas de se sentirem conectadas com as coisas o tempo todo, pelo ato falho de querer existir para alguém, nem que seja por alguns instantes, e a vontade de pertencer e se isolar em mundos expostos na rede.

Até o jeito que se carrega celular é diferente: é como se ele tivesse se tornado um ativador dos dedos e não um objeto, como se fosse um remédio tomado em altas doses e sem o qual não conseguíssemos sobreviver. Uma espécie de pílula digital, desenvolvida para tratar de uma doença crônica, incurável.




Imersos nessa condição de isolamento em redes, deixamos de olhar para os detalhes mínimos no cotidiano que também se conectam a outras coisas, sejam elas belas ou não.

Estar conectado na rede facilita e muito a vida, é verdade, mas e daí que eu estava sem celular por um dia?

Tomei coragem e me conectei com a chuva, resolvi ir embora caminhando sob ela e, sabe, foi até interessante, tinha um quê de pensamento livre, destemido, um quê de  divertido, feito aquelas cenas inusitadas nos filmes do Woody Allen.





Cheguei em casa literalmente toda molhadinha, com uma chuva de mensagens para responder e sobrevivi ao mais importante: fiquei um dia sem minha dose de pílula digital pra contar essa história.


K.C

Está crônica é inédita e foi publicada na edição "Ordinária Literatura" da Revista Literária Primeiro Capítulo.



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Ps.: Vai ter coluna nova aqui blog, além das crônicas!!! Aguardem as novidades.




7 comentários :

  1. Gente, você conseguiu descrever exatamente como eu me sinti quando esqueçi uma vez o celular. É a pior sensação do mundo!! Parabéns pelo a crônica!! Ela é ótima é você escreve muito bem :)

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  2. Uma vez eu li que o homem é quem cria as necessidades para si próprio. O celular é um exemplo disso. Hoje pensamos: como as pessoas conzeguiam viver sem celular ? Também tive a sensação de esquecer meu aparelho, só que para minha sorte estava no meu trabalho. Parabéns pelo post.

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  3. Oi Kelly!!
    Acho que ia me sair bem, eu vivo recebendo reclamação do meu marido por esquecer de carregar o celular. Tem uma semana que terminei de ler minhas msgs do dia das mães rsrsrs
    Parabéns pelo texto.
    Bjs
    https://almde50tons.wordpress.com/

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  4. Olá!
    Realmente hoje as pessoas querem está conectada ao celular o tempo todo e esquece de se conectar as coisas simples da vida. Celular trouce muitas vantagens, mas pelo mal uso das pessoas está se tornando um problemas em algumas situações. Essa crônica é uma realidade do dia a dia. Beijos'

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  5. Olá! Tudo bom?
    Nossa é realmente assim quando esquecemos o celular, que horrível, parece que sem ele não estamos conectados a nada, é um vício.
    Beijos.

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  6. Obrigada pelos comentários!! Que bom que gostaram da crônica e que ela trouxe algo relevante. A vida anda mega corrida esse ano gentemmm do céu! Mas pretendo postar no blog essa semana. Bjs!

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  7. está cada vez mais difícil viver sem esse vício, e o pior, isso vai acontecendo sem perceber. quando vejo, já não há volta.

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